Hoje é uma segunda-feira como qualquer outra. Mas, para mim, é um dia especial, dia de agradecer a Deus por ter permitido que eu vivesse tantos anos e tivesse a oportunidade de tentar crescer como pessoa, de polir as minhas muitas arestas, de melhorar e enriquecer meu mundo interior e batalhar para cumprir os compromissos assumidos, quando aceitei retornar à vida terrena, com o propósito de resgatar meus erros de vidas anteriores.
Hoje é um dia especial para mim pela chance que me dá de revisar e reavaliar minhas atitudes, minhas ações e reações, procurando corrigir o que precisa e pode ser corrigido. Se não conseguir grandes progressos, não me desespero, aceito as minhas limitações, na certeza de que, ao fim e ao cabo, sou um ser humano bem melhor hoje do que fui na juventude. Obrigada, Deus, por minha atormentada e maravilhosa vida!
Amo tão profundamente a vida que esta mesma vida me dá como que o prêmio de continuar vivendo em alegria e em comunicação com o Universo. Hoje, eu já não peço nada a Deus, não planejo o futuro, nem vivo de recordações do passado. Também não temo a morte, sequer penso nela nem encaro a minha como um fato triste. Sei que um dia ela acontecerá e que apenas meu corpo físico terá fim... Minha essência espiritual é eterna...
Quero oferecer a mim mesma uma poesia. Escolhi “ANIVERSÁRIO”, escrita por um dos poetas que mais amo: Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa. A poesia é belíssima, apesar da tristeza que ensombra cada um dos seus versos. Confesso que, apesar de apreciar muito o texto, por sua qualidade excepcional e pela emoção que nos passa, não sinto a vida, nem me apego a memórias do passado, como faz o poeta, ao ponto de perder o gosto pela existência, reduzindo-a a um avassalador vazio e a uma caminhada sem sentido.
Aniversário insere-se na fase depressiva da poesia de Campos, bem oposta a fase futurista, das grandes odes e da celebração estusiástica das conquistas e realizações da época contemporânea.
No dia em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
O contraponto da vida da criança com a do adulto gera um sentimento de vazio absoluto, de perda irremediável de uma felicidade não mais possível de ser recuperada no tempo presente. O presente, para o poeta já na maturidade, nada mais é que um imenso e doloroso vazio, resultante da perda inexorável do bem mais precioso que tinha outrora: a sentimento de pertencimento, de aconchego, de proteção e de alegria, proporcionado pela vida em família. A infância assume, assim, uma conotação de tempo bom, de vida perfeita e de felicidade absoluta, metáfora do paraíso e reduto da nostalgia e da saudade.
O eu lírico expressa o seu desejo impossível de voltar à infância, seu anseio inútil de recuperar do passado. “Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...”, diz o poeta tentando em vão substituir o presente obscuro pelo passado venturoso, rejeitando o presente como um tempo degradado, de ausência, de perda, de aflitivo vazio e de agônica solidão, ou seja, um tempo que já perdeu o sentido e desconhece a alegria.
Assim, a festa de aniversário reveste o sentido simbólico de um ritual familiar no qual a criança é celebrada, torna-se o centro das atenções e do carinho de todos. No presente, ele é apenas o sobrevivente triste de si mesmo, o solitário ser humano, envelhecido, amargurado, vivendo das memórias do que já não é, do que já não tem.